A BAHIA SÃO VÁRIAS
José Cândido Oliveira Silva*
Sinto-me
tomado por um misto de tristeza e
indignação e, ao mesmo tempo, estimulado e desafiado a penetrar num campo
polêmico para abordar a
nossa identidade cultural, pois o que vem sendo apresentado como cultura da
Bahia me incomoda. Sei
que há especialistas, respeitáveis conhecedores deste tema, que o conhecem com
maior embasamento técnico-científico do que eu. Mas, enquanto suas manifestações não chegam ao destino ou não são
atendidas,estou aqui também, como simples cidadão, fazendo a minha parte. Não
tenho ligação com nenhum partido político e sinto-me totalmente à vontade para
expressar a minha indignação e opinião sobre um dos mais importantes elementos de formação de um povo: a sua
identidade cultural.
Anos atrás, quando uma pessoa do
interior pretendia ir à Salvador, capital do Estado da Bahia, dizia: “eu vou à
Bahia”. Era um evento de muita importância, quase uma aventura, que
somente alguns podiam fazê-lo.Uma viagem para um lugar distante,de
muitas novidades, encantamentos e
quase imaginário. Um mergulho no mundo civilizado.
Por ser a capital do
Estado, Salvador certamente, naquela época, gozava de muitos destes
atributos, ao contrário do interior longínquo,
desprotegido, rústico e inóspito. Esta dualidade, que perdurou por
bom tempo,
hoje
não existe mais. As estradas, telefone e principalmente a internet colocaram o
interior no contexto globalizado, interagindo com a capital do
Estado e com o mundo. Não se diz mais que “vai à Bahia” quando deseja viajar
para a capital do Estado. Simplesmente se diz que vaia a
Salvador. O mundo mudou muito, para melhor.
Mas,
os nossos governantes bem acomodados e instalados com muita pompa na capital do Estado, ainda enxergam o interior como
longínquo e inóspito. Talvez, isto explica o estado de abandono em que se acham
as
nossas raízes culturais, especialmente aquelas espalhadas pelos quatro cantos
da Bahia, sem falar, é claro, de áreas como infraestrutura,
educação e saúde.
No
seu espaço geográfico de 567.295 km2
de área, o Estado da Bahia foi dividido para fins de estudo de sua economia em
15 regiões todas elas com características próprias quanto aos fatores
econômicos. Isto nos permite aventar que
estas regiões apresentam, também, distintas raízes
culturais que merecem ser estudadas e
respeitadas dentro do contexto cultural do Estado da Bahia.
A
formação étnico-cultural, com origem
principalmente nos
índios,
negros e brancos, forjaram e moldaram a nossa base cultural
tendo hoje os caboclos e
mestiços como elementos
resultantes e fundamentais para preservação da nossa identidade,
por
carregarem os traços culturais da mistura de raças.
Ao
longo de muitos anos, e ainda hoje, a Bahia sofreu e sofre um descaso cultural
que nos entristece e desalenta. Nossos governantes jamais respeitaram e ainda não
respeitam nem dão o devido valor e atenção à ampla miscigenação da nossa
população e sua distribuição no espaço geográfico da Bahia.
Este
equívoco
histórico com a
Bahia
já
causou danos à cultura negra e a toda cultura baiana ao jogar para escanteio
características fundamentais dos nossos traços africanos e demais grupos
étnicos que estão pulverizados por todo o território do Estado da Bahia. Nossa
cultura agoniza diante deste canibalismo cultural promovido em
nosso Estado pela inércia e passividade dos governos, tendo como ponta de lança
a exacerbação do axé e a ignorância em relação à nossa diversidade cultural.
Ao
contemplar os grupos carnavalescos de Salvador, apoiando-os nas
suas iniciativas, cujas alegorias remetem quase sempre à cultura negra, os nossos
políticos deitam-se numa cômoda e confortável posição. Entendem
eles que, prestigiando a cultura negra através dos grupos afros da capital do
Estado, estão política e socialmente corretos,
portanto, merecedores de dividendos políticos e imunes
às críticas. Consideram-se os promotores de um grande feito e
logo se inflam diante das câmaras de TV para anunciarem, em
rede nacional, o quanto estão prestigiando a cultura da Bahia.
Passam
anos e mais anos e “a Bahia de Mãe-Preta, de Caboclo e Pai João”, de
extraordinárias riquezase raízes históricas, vai perdendo, paulatinamente, sua
identidade cultural.
Não
somos contra o Axé ou qualquer ritmo musical. Ao contrário, estamos indignados com a
desatenção para coma preservação das formas de expressão dos nossos antepassados, representados através de ritmos ou qualquer
outra forma.
Como
sabemos, os traços culturais de cada grupo étnico são definidos pelas suas características
intrínsecas e pelo ambiente que ocupa no espaço geográfico. Assim, entre as
comunidades negras da Bahia podemos encontrar diferenças sutis em seus traços
dependendo onde se localizam,emSalvador,
no Nordeste do Estado ou Chapada Diamantina, por exemplo.
Podemos
imaginar, então, o quanto perdemos ao longo dos anos em valores
culturaisadvindos dascomunidades negras e demais grupos étnicos,distribuídos
por todo o Estado da Bahia,por serem ignorados, anulados, destroçados e
destruídos pela
indiferença, passividade e ignorância de sucessivos governos.
O
artesanato, de invejável criatividade, desapareceu do nosso meio e deu lugar
aos produtos industrializados maquiados de artesanatos sem artesão. Não se vê
mais entre nós as rendeiras, as bordadeiras nem as nossas
tecelãs de inigualáveis habilidades no manuseio do rústico e eficiente tear,muito utilizado, no passado, no
aproveitamento dos capuchos de algodão paraconfecção de tecidos.
Os
nossos violeiros, cantadores, repentistas e trovadores, desapareceram abafados pelo
descaso, deixando sem voz a beleza do “sertão da mulher séra e do homem
trabaiador,”como canta Luiz Gonzaga, o Rei do
Baião.
A literatura de cordel, muito presente entre
nós, até quatro décadas atrás, partiu sem se despedir, sem falar da culinária do
sertão, dos biscoitos e quitutes das nossas
prendadas e dedicadas mulheres sertanejas.
Os
tropeiros, verdadeiros e legítimos desbravadores e conquistadores do nosso
território, fundaram vilas e cidades. Transportaram mercadorias, riquezas e informações. Isto
não obstante, foram relegados ao esquecimento por capricho, não deixando
rastros nos caminhos e nem sequer um pequeno manuscrito fazendo-lhesreferência.
A
utilização da cerâmica para fabricação de utensílios domésticos, uma especialidade das mulheres negras
do Estado da Bahia, simplesmente soverteu. As cavalgadas e procissões estão sem
sentido e nossas Folias de Reis, uma das mais lindas expressões do nosso povo,
estão sem meios e forças para sobreviver.
O
São João em nosso Estado
foi nocauteado pelo desprezo à nossa cultura e jaz agonizante ao som das
esfuziantes bandas de axés e forrós eletrônicos. Estou antevendo o dia que será
necessário viajar para Pernambuco ou Paraíba para assistirmos um autêntico São
João ou para dançarmos
um verdadeiro “Forró Pé de Serra”.
Esta
visão displicente e de menor importância para com as nossas raízes vem colhendo
como resultado um desastre cultural que envergonha os baianos perante aos
demais estados nordestinos, especialmente Pernambuco, onde a política do Estadotem
demonstrado quecontempla, com muita
ênfase e no mesmo pé de igualdade, todas as vertentes culturais.
Na
Bahia, a TV estatal, um grande patrimônio do povo à disposição do Governo, fica
muito a desejar no seu verdadeiro papel de prestigiar e difundira nossa
cultura.
O
que se vê na TV Cultura e nas TVs comerciais é uma verdadeira
apologia aos eventos da Capital do Estado. O interior, onde a diversidade
cultural é mais ampla, permanece com a mesma política do descaso e
desprestígio, servindo apenas para carrear
votos da população na época das eleições.
A
tradicional políticacentralizadora dos governantes do Estado da Bahia,que não
dáa devida atenção para com as demandas socioeconômicas e culturais do
Estado,suscita de modo recorrente,de algumas regiões, apelos para
desmembramento do Estado,tendo como bandeira, quase sempre, a falta de atenção
do Governo para seus pleitos regionais incluídasai as suas tradições culturais.
Bom
seria se os nossos governantes tomassem como referência o Estado de Minas Gerais que
administra com competência e zelo um grande patrimônio culturalque se estende
por um vasto território como a Bahia. Assim, talvez, pudéssemos aprender firmar
melhor o conceito de cultura, além de difundir, prestigiar e preservar os traços históricos dos nossos
antepassados.
Do
vale do Jequitinhonha, próximo à Bahia, aos limites com São Paulo e Rio de
Janeiro; da divisa com o Espírito Santo até o Mato Grosso do Sul, Minas Gerais,
um estado cercado por fortes e tradicionais raízes históricas, preservasuas tradições
como parte da boa cultura mineira, fortalecendo-a a cada dia.
Em
Minas,os negrosmarcaram forte presençano período da mineraçãoe em toda sua
história. Como a Bahia,Minas Gerais conta,além dos negros, com índios, brancos,
caboclos e mestiços na composição da sua identidade cultural de consistência
ímpar. Neste Estado ascaracterísticas
de todos os grupos étnico são respeitadas, prestigiadase difundidas através de eventos, meios de comunicação como a TV cultura,
TVs comerciais locais, além da promoção de encartes em Tvs comerciais em
nível nacional.
Minas
Gerais não é
apenas Belo Horizonte: é o barroco, é samba, folia de reis, congado,viola,
violeiros, tropas, tropeiros, quitutes e quituteiras, calangos e catiras,além
da cultura são franciscana, entre
outros.
Minas
cultua todo o seu espaço geográfico. Prestigia e colabora com imparcialidade com
todas as cidades do interior e se preocupa em manter as características
culturais dos grupos étnicos espalhados por todo território mineiro. Esta forma
como trata a cultura no Estado explica porque ainda hoje estão preservados os diversos traços culturais
forjadores do povo mineiro.
Em
Minas Gerais, por certo, há negligências, mas, se estivéssemos no seu patamarem
relação ao tratamento dispensado à cultura, certamente, a nossa indignação e de
todos aqueles que comungam conosco seria menor.
A
minha Bahia e de todos os baianos não é apenas a Bahia de Euclides da Cunha, de
Jorge Amado, de Dorival Caymmi, do Recôncavo, de Salvador e da Chapada
Diamantina. Ela é tudo isso e muito mais. A Bahiaverdadeira se estende por900
km de costa e
pelas terras ao longo do grandioso e maltratado Velho Chico e do Além São
Francisco.Penetra
pelasSuas
lindas planícies do Oeste cortadas por
rios caudalososque vão
ao encontro do longínquo horizonte da Serra Geral, na divisa com o Estado do
Tocantins e seu Sudoeste entrelaça-se com o Norte de Minas, num fraternal abraço,
através dos Sertões e Geraisda Bahia,
lembrados por Guimaraes Rosa.
A
cultura é assunto de suma importância e a ela deve ser dada especial atenção
pelos nossos governantes por representar a formação da identidade
cultural do povo brasileiro. Não é sem razão que mereceu destaque na
Constituição Federal de 1988nos seus artigos 215 e 216 que fazemos questão de
transcrever:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a
valorização e a difusão das manifestações culturais.
Art.
216.
Constituem
patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os
modos de criar, fazer e viver; (...)
Quando
observamos o horizonte cultural da Bahia sentimos a ausência de olhares mais atentos para as coisas da nossa
terra. O orgulho de ser baiano cada dia vai se esvaindo e
a
exaltaçãoc às enigmáticas afirmativas como:
“baiano é preguiçoso”; baiano só trabalha pela manhã”; “ na Bahia
não se trabalha”, “onde já se viu baiano trabalhar?”, entre outros, muitas vezes compartilhadas
pelos próprios baianos, tornam-se mais presentes.Como
se diz, as mentiras de tanto serem repetidas,acabam virando verdades no imaginário
das pessoas.viram verdades.Quem
mora ou morou fora da Bahia sabe muito bem do que estou
falando.
A
Bahia não é isso e precisa mostrar para o Brasil o
quãaonto significativos são seus valores
perante a história de nosso país, como nossa Independência em 2 de julho de
1923, quase um ano após a Independência do Brasil que ocorreu em 7 de setembro
de 1922. Fora da Bahia as pessoas achamgraça quando
falamos que 2 de julho é
feriado na Bahia porque é a comemoração
da nossa independência. Eles dizem: “é mais um dia para não trabalhar”,ou “
baianos são tão devagar que a independência
chegou lá com um ano de atraso.”Transcrevo a seguir o que diz Paulo
Costa Lima sobre o assunto: “Poucas pessoas fora da Bahia
conhecem a força do 2 de julho. É uma falha enorme de informação histórica,
pois trata-se do processo de independência do Brasil, e não da independência da
Bahia, como até hoje muita gente fala. Uma coisa é dar o grito do Ipiranga, outra coisa é
garantir pleno domínio sobre o território nacional. Entre as duas pontas, uma
guerra. A guerra da Bahia, onde brilhou o heroísmo popular, além de lideranças
como Labatut, Lima e Silva, João das Botas, Maria Quitéria, entre tantos outros.”
Este
é um exemplo emblemático que serve como ilustração do descaso com os nossos
traços históricos. Não há dúvida,isto resulta da falta de cuidado com a coisa
pública e especialmente com nossos valores mais simbólicos que tanto nos
orgulham.
Como
forma de contribuiçãopara que a nossaidentidade cultural não fique vulnerável
aos interesses ou ao abandono dos mandatários políticos, sugiro aos governos da
Bahia, inclusive o atual, o seguinte:
·
Reflexão,urgente,
sobre a forma como tem sido conduzida a cultura em nosso
Estado, ao longo dos anos, envolvendotodos os seus colaboradores tendo como
objetivo final um consistente trabalho
de ausculta e captação dos nossos valores culturais por todos os municípios e
seus respectivos distritos, sob a forma de um diagnóstico;
·
Com
base no diagnóstico, elaborar documento para aprovação pela Assembléia
Legislativa, contando entre outros com as seguintes medidas a serem vigoradas a
partir de agora: a) – que a cultura da Bahia seja tratada com base em políticas de Estado definidas e
aprovadas e não mais sujeitas apenasaos ditames dos mandatários eleitos; b)que
nossa identidade cultural prevaleça e, portanto, seja protegida, divulgada,
respeitada e identificada como patrimônio do Estado da Bahia e do Brasil.
Vitória da Conquista, 1715/07/2012.
(*)
José Cândido Oliveira Silva é economista
jcandidoos@terra.com.br